Foto: Conrado Moreira Conrado Moreira
Noite de domingo, 26 de julho. A pequena Grão Mogol acolhe os visitantes que participam do 27ª Festivale. Na Matriz de Santo Antônio, o frade holandês Franciscus Henricus van der Poel, o conhecido Frei Chico, termina a celebração da missa conga que abriu o Festivale. Clara Karmaluk e Conrado Moreira, dois jovens estudantes de comunicação, o abordam e começam uma despretensiosa e deliciosa conversa:
Frei Chico, como o senhor conheceu o Vale do Jequitinhonha?
Eu cheguei ao Brasil em 1967, no fim do ano, em plena ditadura militar, e depois que eu aprendi o português o provincial me propôs ir para o Vale. Ele disse: esses jornalistas da época da ditadura gostam que algum padre fale as coisas com clareza, e vocês que não entendem nada dessas coisas, estão recém chegados, vão falar suas besteiras lá no interior. Depois ele disse: Você nunca vai entender a cidade grande, depois que você veio da Holanda. Você precisa primeiro viver no interior pra poder entender o povo brasileiro na cidade também. Você vai começar em Araçuaí. Eu não tinha nenhuma opção, também não tinha vontade de escolher. Porque como é que você chega num país que você não conhece e vai querer escolher onde é que você quer trabalhar? Depois que eu saí de Araçuaí eu fui liberado. Já tem 31 anos que sou liberado, não preciso ser vigário. Mas a gente reza, e eu tenho esse privilégio de poder me dedicar a esse material. Publiquei 6 livros , entrei na Comissão Mineira de Folclore, o único estrangeiro da comissão. Entrei no Instituto Histórico e Geográfico de Minas, por causa de livros que eu tinha publicado, e sou músico, né?!
E quando surgiu o amor pelo Vale?
Olha, eu falo que meu trabalho deu um sentido à minha permanência no Brasil. Às vezes pode parecer um pouco exagerado, mas eu acho que se eu tivesse que ter ficado vigário numa paróquia, eu não sei se eu teria aguentado ficar no Brasil não. Mas não posso dizer que tive algum problema da parte da Ordem. Eles me liberaram! E eu sempre cuidei também de divulgar na revista dos Franciscanos as coisas importantes que eu fazia: gravou um LP com um coral do Vale, publicou um livro, participou do Congresso Mundial de Educação Através da Arte, fez pesquisa em Portugal várias vezes. Então de vez em quando eu anunciava pra não dizerem: o quê que esse cara tá fazendo aí, já tá faltando tanto padre no Brasil! Então a gente mesmo contribuiu para que fosse conhecido o trabalho da parte da Igreja, publiquei dois livros, estudos da CNBB, quer dizer, eles têm confiança no trabalho que a gente faz e dois na imprensa oficial. Isso deu um sentido à minha vida. Se eu voltasse pra Holanda não saberia, não estou mais adaptado.
Então quer dizer que Frei Chico hoje é mineiro?
Não, não pode. Eu só posso ser o que eu sou. Eu sou um holandês que está a 41 anos no Brasil. Não pode. Eu mesmo sei que o dia em que eu falar que já sou mineiro sou capaz de estar fazendo a maior besteira da minha vida, porque não dá. Eu aprendi a gostar de Minas, que eu amo muito, mas não me engano não. É uma convicção, eu sou um holandês, não tem outro jeito. (...) Mas como holandês eu tenho algumas vantagens. Eu pergunto coisas que para qualquer brasileiro é tão comum que não pensa sobre isso. Mas porquê que é assim? Depois vivendo no meio do povo, eu acho que quem não vive no meio do povo não tem o direito de falar em nome do povo não.
E o que o senhor tem a dizer sobre seu trabalho no vale?
Não sou brasileiro e além disso eu não sou pobre. No sentido de que eu tenho a vida segura, e o pobre não tem isso. O antigo método de escrever o folclore se limitava muito no isolamento dos elementos culturais. Eles pegam a folia de reis e dastacam o verso bonito, a bandeira, a roupa. Mas quando vai perguntar quanto é que esse cara ganha, como é que é a casa dele, ninguém pergunta, não sabe. Então nós começamos do outro lado. Eu procurei os aliados dos pobres. Primeiro os folcloristas. Os folcloristas ficam sendo uma coisa assim meio triste, porque você registrava os batuques e daqui a pouco não tem mais ninguém cantando. E aquilo era um pouco desanimador. Aí eu comecei com os Socialistas, aliados dos pobres. Só que os socialistas nunca valorizaram a cultura do pobre, e talvez seja isso mesmo a causa do fracasso do socialismo. E até mesmo a festa que o pobre faz eles consideram desperdício de dinheiro, porque a festa é fuga. Mas gente, para o pobre a festa é o único dia certo do ano que permite a ele acreditar que essa desgraça de todos os dias um dia vai mudar! Então o socialismo, que se chama de materialismo histórico, só bate palma quando o pobre repete o que eles ensinaram. A teologia da libertação cometeu o mesmo erro. Eu me considero da Teologia da Libertação, considero o socialismo, mas eu nunca consegui aceitar. E o que me salvou foi Paulo Freire. (...) Aí eu aprendi. Ajudar o pobre, em primeiro lugar, é dar valor àquilo que ele já tem. Sua história, sua cultura, seus ideais, suas lideranças. É o que eu tenho tentado fazer.
A conversa, que começou às portas da Matriz, continuou ladeira abaixo e só foi terminar ao final da simpática e aconchegante “Rua Direita”. Frei Chico, vestindo um lindo hábito bordado por artesãs do Vale, continua a conversa amigavelmente até que o som do show na Praça Beira Rio começa. Os jovens então se despedem do velho senhor, que soube e sabe tão bem entender o povo e a cultura do Vale do Jequitinhonha, e deu em poucas horas lições de religiosidade engajada, sincera e consciente.
E com muita música, naquela linda noite, continua o Festivale...